A faca para “bushcraft”

Por J. A. Voss

vca@cutelariaartesanal.com.br

“A faca é a menor e a mais portátil das ferramentas de corte. Leve e discreta, está prontamente disponível para centenas de tarefas que fazem parte da vida mateira”

— Mors Kochanski, em “Northern Bushcraft”

O termo “bushcraft” entrou no Brasil há poucos anos, vindo de regiões distantes como os Estados Unidos, a África do Sul, o Canadá, a Nova Zelândia e a Austrália, onde designa o conjunto de atividades ou habilidades necessárias à vida “mateira”. Por aqui ainda temos dificuldade de entender a expressão, que difere em muito da chamada “sobrevivência” em regiões de mata. Via de regra, o “bushcrafter” está mais para alguém que vive a vida em ambiente de mata e se adequa a ela, e menos para um “sobrevivente” de alguma situação inesperada que procura apenas obter o seu sustento imediato e conseguir sair de forma rápida de onde quer que esteja. Há uma sutil diferença entre essas duas situações – vida integrada ao ambiente e sobrevivência extrema neste ambiente – que vai implicar em equipamentos diferenciados para estas duas situações.

O “mateiro” tem grande afinidade com as atividades de campo praticadas ao redor do mundo como o escotismo de Baden Powell, onde o praticante busca integrar-se ao meio de forma pouco invasiva, seja pela construção de abrigos, seja pela obtenção de fogo, água e outros meios de sustento na mata. Mais que sobreviver, o praticante de “bushcraft” procura viver no ambiente de forma integrada e desenvolver ali as habilidades técnicas que muitos de nossos antepassados utilizavam em sua rotina diária.

Nesta atividade mateira, talvez a ferramenta mais básica e essencial seja a faca. Não é preciso dizer que ela faz parte da história do homem à centenas de anos, e que proporcionou muito mais agilidade e eficiência nas tarefas de seu dia a dia há inúmeras gerações.

Este artigo tem a intenção de apontar alguns dos requisitos da chamada “faca para bushcraft”, apontando critérios de seleção para que você possa escolher de forma mais adequada a ferramenta que vai acompanhá-lo em suas aventuras nas regiões de mata que ainda nos restam, bem como orientar os cuteleiros neste estilo quase específico de desenho de facas.

A atividade mateira

O termo “bushcraft” é utilizado na Austrália desde o século XIX, aparecendo em diversos livros sobre a vida ao ar livre. O termo “bushman”, ou “bushcrafter” é utilizado para referência ao homem praticante do “bushcraft”. Ambos foram utilizados em diversos livros, como “The History of Australian Exploration from 1788 to 1888”, de  Ernest Favenc, publicado em 1888; “Campaign Pictures of the War in South Africa (1899-1900)”, de A. G. Hales, publicado em 1901, entre outros, que ajudaram em sua popularização.

“Bushcraft” engloba todo um conjunto de técnicas e habilidade de vida mateira e adaptação do homem à natureza que já fizeram parte do conhecimento e da tradição da população em geral, mas que acabaram por cair no esquecimento pela simples falta de prática determinada pela vida moderna nas cidades. São técnicas simples, como saber fazer fogo sem fósforos ou acendedores, construir um abrigo, pescar, entalhar uma colher ou utensílio de madeira ou mesmo construir sua própria faca, machado ou outras ferramentas de corte. São atividades que eram comuns há algumas décadas, mas que perderam força devido ao processo moderno de industrialização.

Entretanto, o valor dessas técnicas permanece imutável. O “bushcrafter” não se propõe a reinventar a roda, mas a saber como as coisas funcionam, como podem ser feitas de forma simples e em saber como se pode utilizar essas técnicas na resolução dos problemas do quotidiano. Este conjunto de técnicas e habilidades que constituem a “arte mateira” permite uma grande capacidade de adaptação ao praticante, que pode retirar seus utensílios e equipamentos direto da natureza.

Trata-se não apenas de uma atividade de sobrevivência, pois vai além do “sobreviver a algo” num curto espaço de tempo, estando mais próximo a “viver depois de algo” numa perspectiva de mais longo prazo. Daí que o praticante de “bushcraft” deve agregar em seu conjunto de conhecimentos informações sobre os recursos disponíveis em determinada região, a época de plantio e produção de plantas, os animais ali existentes, conhecer sobre ervas e produtos naturais que possam ser utilizados de forma medicinal, etc. Tendo essa visão de mundo e de si mesmo, o praticante treinado pode enfrentar os problemas que porventura surjam tanto no dia a dia quanto em situações extremas de sobrevida em regiões inóspitas.

A faca para “bushcraft”

Como não poderia ser diferente, para que o praticante desenvolva este conjunto de habilidades necessárias a resolução dos problemas da vida mateira, será necessário dispor de uma boa faca.

A SBT (“Skookum Bush Tool”), considerada por muitos uma das facas ideais para a prática do “bushcraft”

A “faca para bushcraft” é hoje quase um ramo específico da cutelaria, tanto industrial como artesanal. É comum vermos artesãos e mesmo empresas conhecidas no ramo do fabrico de facas “outdoor” colocando o termo “bushcraft” em seus produtos.

Mas o que é considerada uma boa faca para bushcraft? Qualquer faca pode ser utilizada para a atividade?

De fato, qualquer faca pode ser utilizada para praticamente qualquer atividade, mas é correto afirmar que determinadas facas se prestam mais a algumas atividades do que outras, seja pelos quesitos de formato, tamanho, peso, geometria, e outros, como veremos a seguir.

Alguns modelos de facas para “bushcraft” modernas

Requisitos de uma boa faca para “bushcraft”

As considerações que elencamos a seguir tem origem na opinião e na experiência de diversos praticantes de “bushcraft” ao redor do mundo, bem como nas observações de autores como Mors Kochanski, Ray Mears e outros. Claro que alguns pontos podem variar de acordo com o gosto pessoal e as opções disponíveis ao praticante aqui no Brasil, mas servem de guia para a escolha de uma boa faca – e podem ser adequados à realidade individual com base na experiência de campo e a prática. Como em tudo na vida, na escolha da faca há sempre espaço para o gosto e a experiência pessoal.

Para o cuteleiro, o conhecimento detalhado deste tipo de faca é essencial, já que muitos definem suas facas de acordo com critérios pessoais nem sempre ligados à atividade, mas sim a uma percepção errônea do tipo de faca adequado à prática da lida mateira. Não basta colocar a denominação de “bushcraft” em uma faca que não será utilizada corretamente e com a eficiência necessária, sendo por vezes descartada em campo em detrimento de uma faca menor, mais barata mas mais adequada.

A ilustração a seguir serve de exemplo do perfil típico de uma faca para “bushcraft” e suas principais partes:

Tamanho e peso

Uma faca para uso na atividade mateira deve ser leve e pequena. Como a prática do “bushcraft” consiste em se dispender um tempo considerável na mata, um equipamento pesado se torna incômodo com o passar das horas.

É quase consenso entre os praticantes que a faca ideal deva ter uma lâmina do tamanho da largura palma da mão do operador – cerca de dez ou quinze centímetros. Desta forma ela será útil quando for utilizada para entalhar madeira, algo que é com frequência necessário, e ainda assim ser grande o suficiente para permitir que seja utilizada para cortar galhos (na técnica conhecida por “batoning”). Facas muito menores podem ser perdidas facilmente quando caem em meio à vegetação, e facas maiores são menos ágeis para estas tarefas mais delicadas.

Por ser necessária uma faca pequena e leve, a espessura do aço deve ficar em cerca de 3 mm, com uma largura de lâmina de no máximo 30 mm.

Formato da ponta

A ponta da faca deve estar alinhada com o centro da lâmina – geralmente no formato conhecido por “spear point”. Este desenho facilita o uso nas tarefas mais delicadas de entalhe e corte, sempre presentes na vida mateira. Claro que outros formatos são também adequados, desde que a ponta esteja o mais próximo possível do eixo central do corpo da faca.

O dorso da lâmina

O dorso da lâmina deve estar alinhado com o dorso do cabo, sem “degraus” ou protuberâncias que atrapalhem a empunhadura da faca. O dorso deve ser liso, sem falsos fios ou contrafios que atrapalhem o “batoning”. Muitos praticantes preferem um dorso sem nenhuma ranhura e com quinas bem vivas, o que é útil na hora de se utilizar uma pederneira ou “ferrocério”. Não há nenhuma vantagem no uso de lâminas com dois gumes, como adagas, na atividade mateira.

O corpo da faca

Aqui a quase totalidade dos praticantes de “bushcraft” prefere as chamadas facas “full tang”, nas quais a espiga é a continuação da lâmina:

Facas com estrutura “full tang”

A ilustração acima mostra a vista superior de facas “full tang” e das talas dos cabos. Este tipo de construção é o mais robusto e durável, apesar de adicionar um peso extra ao conjunto.

Com esta estrutura reforçada, a faca poderá ser utilizada de forma intensiva, sendo forte o bastante para servir de alavanca (para esforços leves, já que esta não é a finalidade de uma faca) e para o corte de galhos no “batoning”.

Outro tipo de espiga, conhecido como “partial tang”, está presente em uma das mais populares facas para “bushcraft”, produzida pela empresa sueca Mora. Quase a totalidade de suas facas possuem espiga parcial inserida em um cabo plástico ou emborrachado. Mesmo que não sejam tão resistentes como as “full tang”, são duráveis o suficiente para a maior parte das tarefas, inclusive o “batoning” em peças pequenas de madeira. Outra vantagem é a redução do peso que este tipo de estrutura proporciona. A ilustração a seguir mostra os diversos tipos de espigas parciais das facas Mora:

Uma boa faca mateira deve também suportar alguns graus de flexão lateral sem partir ou apresentar problemas ou deformações.

A faca típica de “bushcraft” não tem guarda, pois ela simplesmente atrapalha a empunhadura e não agrega nada a este tipo de ferramenta. Como ressaltado, uma pequena guarda inferior para proteção dos dedos é aceitável, desde que não atrapalhe na empunhadura.

Serrilhas, recartilhados e o “jimping” podem existir, desde que não atrapalhem – já que a sua funcionalidade e emprego nesta atividade é discutível.

A lâmina pode apresentar alguns furos em seu corpo, que podem ser utilizados para entortar arames ou quebrar espinhos, bem como para amarrar a faca em um galho extensor.

A ilustração a seguir foi extraída do livro “Northern Bushcraft”, de Mors Kochanski, um dos mais experientes instrutores de “bushcraft” da atualidade. Alguns dos requisitos que ele considera essenciais podem ser vistos aqui (dorso reto e sem fio, sem guarda, ponta no centro do eixo do corpo da faca, etc).

A guarda inferior – geralmente apenas um ressalto que evita o avanço dos dedos em direção ao fio da lâmina – é aceitável, mas atua mais como um fator de interferência na “pega” do que algo realmente útil. Neste tipo de faca, o movimento de estocada à frente é inexistente (se for necessário será feito ou por outra faca, ou pela faca amarrada à algum extensor, como um galho reto, servindo como lança).

Uma guarda também atrapalha a utilização de uma boa bainha, que permita uma inserção profunda e segura da faca, tornando mais fácil perder a lâmina em atividade.

O “pomo” da faca deve ser resistente, para evitar danos em eventuais quedas. O “skull crusher” ou “quebra vidros” no pomo é desnecessário, e se estiver presente não deve atrapalhar a empunhadura e o uso prolongado da faca.

O aço

A lâmina deve ser feita em um bom aço, tratado termicamente para permitir uma boa retenção de fio durante o uso, mas não tão dura que necessite equipamentos especiais para ser reafiada. A grande maioria das facas utilizadas por aqui são de aço carbono, apesar de no exterior a variedade de aços ser bem maior – inclusive inúmeros tipos de  aço inoxidável, que traz a vantagem de ser menos suscetível à oxidação em ambientes úmidos ou salinos.

Geometria da lâmina (seção transversal)

A geometria do desbaste deste tipo de faca é geralmente naquele conhecido por “scandi”, apesar de não ser uma geometria de fácil afiação para quem não tem muita prática:

Pessoalmente prefiro geometrias como a “high flat” ou mesmo a “full flat”, que permitem à faca uma melhor habilidade de corte sem interferir no desempenho em atividades delicadas como o entalhe em madeira:

A região do fio deve ser suavemente curva, desde quase a sua saída no ricasso até a ponta. Este desenho facilita a afiação, permitindo recuperar o fio da faca sem maiores problemas. A ponta da lâmina deve ser afiada e permitir uma boa penetração em materiais como a madeira, sem muito esforço.

O cabo

Como vimos, a faca ideal terá um corpo integral (“full tang”), o que implica num cabo composto de duas talas. A fixação dessas talas será feita preferencialmente com parafusos tipo “Loveless” ou “Corby”, que agregam uma grande resistência ao conjunto do cabo, que ao final da montagem serão coladas na espiga.

O cabo deve ter a espessura correta para que seja envolvido na palma da mão do operador. Cabos muito finos ou muito grossos tendem a causar fadiga e bolhas no uso prolongado. A seção do cabo deve ser preferencialmente oval, e não redonda ou quadrada. Um cabo oval auxilia uma rápida identificação da região de corte, e diminui o cansaço e as bolhas.

O cabo deve permitir alguma customização e ajuste à mão de seu operador.

Com relação a materiais para o cabo, há inúmeras opções disponíveis em materiais naturais (como o osso, o chifre de animais ou a madeira – talvez o material mais comum) e sintéticos (como a micarta, o corian, o celeron, o C-Tek e outros). Como este tipo de faca será utilizada em ambientes sujeitos a variações de temperatura e umidade, deve ser praticamente imune às ações do ambiente que possam implicar em trincas, descolamentos ou rachaduras, o que danificaria a faca num prazo relativamente curto (especialmente as facas de aço carbono). Neste quesito – durabilidade –  o material sintético é imbatível, em especial a micarta – caseira ou industrial.

A bainha

Nenhuma faca estará completa sem a sua bainha. Uma boa bainha é necessária não apenas para a proteção da faca, mas para permitir que ela seja carregada de forma prática e acessível, estando sempre pronta para o uso.

Para a atividade mateira, uma bainha simples tipo “saco”, que envolva toda a faca de maneira segura, é sempre preferível. Presilhas e outros acessórios para fixação tem a desvantagem de deixar o conjunto volumoso e sujeito a prender-se na vegetação espessa.

Bainha típica de uma faca para “bushcraft”, tipo saco, que envolve totalmente a faca

Bainha mais elaborada, com espaço para acessórios e possibilidade de porte horizontal ou vertical

Quanto a materiais, couro natural de boa espessura que receba algum tipo de tratamento com óleo ou outro produto que a deixe mais resistente principalmente contra a umidade, é sempre uma boa opção. Modernamente, as bainhas de Kydex (sintéticas) tem despontado como opções interessante, muito embora sejam abrasivas, riscando com facilidade a lâmina e danificando seu acabamento. A grande vantagem é que não retém nenhuma umidade, auxiliando a evitar a oxidação.

“Mora Companion” com bainha de Kydex e “firesteel”

Para completar o conjunto, um “firesteel” geralmente é colocado na bainha. Há diversas opções de escolha neste acessório, e o importante aqui é que ele fique firme na bainha e não caia, e seja colocado de forma a não atrapalhar no uso, prendendo-se na vegetação.

Há opções de bainha mais elaboradas, que permitem carregar uma série de acessórios que visam facilitar a vida do mateiro, e são sempre boas opções, que podem ser customizadas de acordo com as necessidades de cada um.

Conclusão

 Como guia rápido de referência, elencamos as características de uma boa faca para “bushcraft” vistas até aqui:

1 – Leve e pequena;

2 – Preferência pela estrutura “full tang” com talas de material sintético presas com parafusos;

3 – Ponta “spear” ou “drop point”, com centro o mais proximo possível do eixo da lâmina;

4 – Dorso liso, com quinas vivas e sem guarda;

5 – Aço carbono ou inox, com bom tratamento térmico;

6 – Geometria “flat” ou “scandi”;

7 – Bainha que envolva o máximo possível a faca, evitando sua perda em campo.

Observando estes itens básicos será possível escolher uma boa faca para suas aventuras na mata da forma mais acertada.

Lembramos que estes critérios servem apenas como sugestão nesta seleção, pois o que conta também são quesitos como preço e preferência do usuário. De qualquer forma, o objetivo aqui foi tão somente o de servir de base para que os interessados possam escolher a sua ferramenta ideal para o “bushcraft”.

Não entrei em detalhes quanto a modelos específicos, pois existe uma grande variedade de desenhos que possuem seus defensores e rendem discussões acaloradas e intermináveis, mas uma breve pesquisa fará o interessado deparar-se com as SBT, as Mora, as Bark River no estilo “Canadian” e com uma infinidade de variações industriais e artesanais neste tipo de lâmina. Na cutelaria artesanal também há um grande número de artesãos oferecendo facas para “bush”, mas alguns sem conhecimento básico e principalmente sem a vivência de campo que lhe permita conhecer as necessidades do “bushcrafter”.

O critério final para a seleção de uma faca é sempre o seu uso, que será o grande filtro, separando os simples modismos dos modelos consagrados por quem realmente pratica a atividade.

Por último vale salientar que a nossa interferência no meio ambiente deve ser mínima, e a preocupação com a conservação de plantas e animais deve estar presente durante todo o desenrolar da atividade mateira.

Respeite a natureza!

 

João Alexandre Voss de Oliveira

vca@cutelariaartesanal.com.br

01 Mai 2015